quarta-feira, 15 de julho de 2020

Aristóteles e a vida moderna: você nasceu para ser escravo?

Olá pessoal.

Na história da filosofia há diversos debates sobre a escravidão e seus motivos. Aristóteles, celebrado por muitos e odiado por outros, defendia, em linhas gerais, que "uns eram escravos por natureza, enquanto outros livres por natureza; uns nasciam para comandar, enquanto outros para serem comandados"

A grande dificuldade ao estudar obras e pensamentos do passado é afastar-se do anacronismo, isto é,  evitar apreender as ideias clássicas com os nossos óculos pós-modernosos. Por exemplo, é um anacronismo dizer que Jesus era comunista ou capitalista; são afirmações estapafúrdias. Capitalismo e comunismo são conceitos modernos. Não faz sentido aplicá-los em comunidades judaicas de mais de 2.000 anos atrás. Quando se faz isso, sem atenção para o contexto cultural da época, qualquer um pode ser tachado de machista, racista, misógino, fascista, capitalista, comunista, enfim, do que você quiser. 

É usar óculos pós-modernos para enxergar uma realidade cultural totalmente diversa.

Mesmo assim, ainda pergunto, nascemos para ser escravos ?

A escravidão clássica quase foi extinta em todo o mundo; poucos países mantém esse tipo de relação entre pessoas. 

Mas a maioria das pessoas é de fato livre ? 

Levantar 6 horas da manhã e dormir meia-noite; não ter tempo para os filhos nem para a família; enfrentar o transporte coletivo (duas horas para ir e duas para voltar do trabalho); não ter tempo para praticar esportes; viver a base de remédio; happy hour no trabalho (uma grande "festa estranha com gente esquisita") em que somos obrigados a parecer felizes para agradar colegas e chefes, vender sua força de trabalho, basicamente, para pagar impostos, juros bancários e consumir aquilo que não precisa para agradar pessoas que não se importam com você; espiar a vida alheia nas redes sociais; ser monitorado 24 horas por dia por google, amazon, facebook huawei e sei lá mais o quê; receber ligações, o tempo todo, de gente querendo vender coisas; ser obrigado a ficar ao lado do celular, o tempo todo, porque pode receber uma mensagem urgente do trabalho (urgente coisa nenhuma, ninguém vai morrer por conta disso); conferir e-mail 100 vezes ao dia; ser estimulado, o tempo todo, para sempre querer mais, mais e mais; mudar de cidade o tempo todo para buscar novas oportunidades, sentindo que não pertence a canto nenhum; assistir noticiário de política e ler tudo sobre o assunto, como se isso fosse mudar sua vida.

Em algum momento da minha vida adotei algum desses comportamentos. Talvez você seja um afortunado e veja coisas positivas em tudo o que relatei. Pode até ser. Nunca fui acorrentado, nunca sofri agressões físicas, enfim, nunca fui um escravo no sentido clássico. Mas, em diversas vezes, me senti um escravo do mundo moderno, um escravo de um mundo sem sentido.

A impressão que tenho, atualmente, não é que uns nascem para ser escravos e outros para serem livres; todos nascem para ser escravos. Escravos do Estado, de instituições, de grandes empresas, de um estilo de vida e de outras coisas que nem temos ideia. É a minha matrix, a sua matrix, a matrix nossa de cada dia.

"Ai, que mimimi! Nossa vida é muito melhor do que a de pessoas do passado. Temos youtube, facebook, leite de caixinha, gatorade, iphone, ifood, uber, internet e um monte de outras coisas"

Respondo com Raul Seixas (Ouro de Tolo):

É você olhar no espelho
E se sentir um grandessíssimo idiota
Saber que é humano, ridículo, limitado
E que só usa 10% de sua cabeça animal
E você ainda acredita que é um doutor, padre ou policial
Que está contribuindo com sua parte
Para nosso belo quadro social
Eu é que não me sento no trono de um apartamento
Com a boca escancarada, cheia de dentes
Esperando a morte chegar

A escravidão moderna não é a ausência de coisas; não é a ausência de liberdade; é a ausência de sentido. Existimos sem saber o porquê de viver e lutamos por coisas de que sequer gostamos. É a vida no piloto automático - só que quem programou o piloto foram outras pessoas e não você.

É verdade que os antigos também podiam viver sem sentido; não é algo próprio dos pós-modernos. Mas acredito que nunca houve uma época tão carente de significado como a nossa. Somos seres tribais sem tribos. Pessoas que precisam de pessoas e são forçadas a viver cada vez mais sozinhas - falo por mim.

Pensar e escrever tudo isso não me deixa triste: só me faz pensar nas coisas de que realmente gosto. Naquilo que realmente valorizo. Nas pessoas, nas ideias e não nas coisas. 

Se tem dificuldade em pensar sobre o que importa, faça um exercício: imagine que morrerá daqui um ano. Não precisará trabalhar até lá. O que você gostaria de fazer? De que realmente gosta? Com quem gostaria de conversar e passar seus últimos dias?

Só um lembrete: após sua morte, você, como a maioria de todos nós, será substituído e esquecido. Os seus troféus conhecerão o destino eterno de todas as coisas: a lata do lixo.

"Pois os vivos sabem que morrerão, mas os mortos não sabem coisa nenhuma, nem tampouco têm eles daí em diante recompensa; porque a sua memória ficou entregue ao esquecimento" (Eclesiastes 9.5)

"Pois, tanto do sábio como do estulto, a memória não durará para sempre; pois, passados alguns dias, tudo cai no esquecimento. Ah! Morre o sábio, e da mesma sorte, o estulto! (Eclesiastes, 2.16).

Talvez a resposta para muitos dos seus problemas - inclusive a vida de escravo moderno - esteja em ouvir a si mesmo. Estar atento para aquilo que realmente lhe importa. Conectar -se ao essencial e libertar -se das futilidades.

"Conhece-te a ti mesmo".

Um abraço e até a próxima.









3 comentários:

  1. sou escravo
    não vejo outra maneira, salvo me filiar a alguma seita religiosa bizarra
    vou me divertindo com a viagem enquanto não chego na morte

    abs!

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  2. A escravidão na antiguidade é bem diferente da escravidão africana que conhecemos aqui no Brasil. Na Grécia antiga por exemplo, os escravos estavam em melhor situação que os homens livres e pobres, pois os escravos tinham a garantia de ter as suas necessidades básicas atendidas pelo seu dono.

    Muito interessante a sua abordagem, muitas vezes eu fiz essa reflexão. Creio que ser escravo hoje é não ter poder sobre o próprio tempo, pois tempo é vida. Se você é obrigado a vender o seu tempo para sobreviver, logo és um escravo.

    Abraços!

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  3. Olá Scant e "A virada do jogo",

    No dia do post estava me sentindo mais escravo do que hoje. rsrs... concordo que a medida principal é a disponibilidade de tempo. Se precisa vender sua força de trabalho, você tem pouquíssimo grau de liberdade e nem percebe. Abraço

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